sexta-feira, maio 20, 2011

Aumento do IVA, impostos especiais e revisão tarifária na electricidade.

Como é sabido, o memorando de acordo entre Portugal e a comunidade internacional (Europa e FMI) prevê uma revisão das fiscalidade da electricidade - concretamente um acréscimo do IVA e a criação de impostos especiais (excise dutties) de acordo, aliás, com o exigido pela Directiva Europeia 2003/96/EC de 2003, mas não praticado pelo nosso Estado.
Já num artigo publicado há perto de um mês no Expresso, a meias com o Prof. Clemente Nunes, escrevêramos que o alto custo comparado da nossa electricidade era escondido por, entre outras coisas, um subsídio indirecto aos produtores mediante um IVA especialmente baixo. Vale a pena, por isso, começar por comparar o nosso IVA com o praticado pelos países por onde há tempos fiz um tour de visita aos respectivos mix energéticos - ou seja, todos os da União Europeia a 27 a que pertencemos, excluindo os minúsculos (Luxemburgo, Chipre, Malta...).

IVA pago nos países da União Europeia:
Espanha: 18%.
França: 19.6%.
Itália: 20%.
Áustria:20%.
Hungria: 20%.
Eslovénia:20%.
Grécia:13%.
Bulgária:0%.
Eslováquia:20%.
Chéquia:20%.
Alemanha:19%.
Polónia:23%.
Lituânia:22%.
Letónia:21%.
Estónia:20%.
Finlândia:23%.
Suécia:25%.
Dinamarca:25%.
Holanda:19%.
Bélgica:21%.
Irlanda: 13.5%;
Reino Unido: 5%.

Como se vê, países com IVA menor que o nosso (6%) são apenas a Bulgária e o Reino Unido para as famílias, e depois de nós vêm a Grécia e a Irlanda, já com valores de 13 e 13.5%. A grande maioria tem um IVA à volta dos 20%.
O excise que foi tornado obrigatório pela União em Directiva de 2003 destina-se a penalizar as fontes de electricidade emissoras de CO2, essencialmente o carvão e o gás natural, mas é muito baixo em todo o lado: o mínimo definido é 0,055ç/kWh. Portugal, no entanto, é o único país da União que se esqueceu dessa taxa, ao mesmo tempo que se tem "esquecido" de eliminar a pré-histórica taxa de radiodifusão, que acarreta um encargo basicamente igual.

Para melhor compreensão do que poderá resultar para o consumidor se, aos custos actualmente compondo o tarifário, forem incluídos os efeitos das novas tarifas criadas recentemente para remuneração do "serviço de potência" das hidroeléctricas e térmicas, a amortização parcial do défice tarifário e o IVA à taxa normal (23%), em vez da actual de 6%, anexo um gráfico comparativo em que "corrigi" a barra dos preços portugueses (PT) com esses novos valores. Ao lado, a laranja, o resultante se, em vez do IVA de 23%, for aplicado o de 13%.

Como é evidente, com um IVA de 23%, semelhante ao da maioria dos nossos parceiros europeus (e igual ao finlandês), passaremos a ter uma das electricidades mais caras da Europa, ao nível da de Itália, o que deve ser ponderado com o facto do ordenado médio líquido em Portugal (1040 €) ser sensivelmente metade do da média europeia e igual ao da Eslovénia.
Com um IVA "intermédio" de 13% ficaremos "apenas" com a electricidade mais cara que a espanhola (que tem um IVA de 18%), o que convirá ponderar com o facto do nosso ordenado médio líquido ser 70% do espanhol...
O actual Secretário de Estado apressou-se a desmentir a possibilidade de vir a ser aplicada a taxa de 23%, mas é claro que foi o próprio Governo a que pertence que negociou e assinou este acordo com a Europa e o FMI!
Em todo o caso, convém ter em conta duas coisas:
  1. O IVA da electricidade apenas penaliza os consumidores domésticos e o consumidor Estado (incluindo a iluminação pública), que constituem respectivamente, no presente, 29% e 9% do total. Para as empresas apenas constitui um problema de tesouraria, visto que o podem deduzir ao IVA cobrado.
  2. Para as empresas o que importa é o custo total da electricidade sem IVA mas incluindo quaisquer impostos especiais que, por natureza, não sejam dedutíveis.
O aumento de IVA para 23% geraria assim, tendo em conta o consumo anual nacional actual de 49 TWh, uma receita fiscal adicional de 0,37 biliões de € (bilião = mil milhões, usando a notação americana), quiçá menos dada a contracção de consumo que implicaria (confirmo a ordem de grandeza  do resultado das contas do Jornal Económico quanto ao agravamento da factura das famílias: +10€/mês na factura média mensal).
O Prof. Nogueira Leite falou em 0,5 biliões, mas receio que ele estivesse a incluir nas suas contas o consumo do Estado que é, só por si, quase 1/3 do das famílias portuguesas. Ora, sendo certo que tal como as famílias o Estado também não pode deduzir esse IVA nas suas contas, teria nesse aumento um acréscimo de despesa (0,12 biliões) que iria certamente cobrir com parte do IVA cobrado às famílias.
Tal só não acontecerá se esse aumento de IVA for acompanhado de uma correspondente redução do consumo nos edifícios do Estado, ou seja, a menos que a despesa de electricidade do Estado seja congelada.
Vale a pena notar, com efeito, que se há sector de consumo energético onde mais sentido fará falar de poupança e eficiência é nos edifícios do Estado que, de 1995 a 2009, aumentaram a sua parcela relativa no consumo nacional de electricidade em 40%, de 4,0 para 5,6% (a iluminação pública no mesmo período "só" aumentou a sua parcela relativa em 25%, de 2.7% para 3.4%) [dados da Pordata]...

Vem esta contabilidade do IVA sobre a electricidade a propósito de um outro objectivo acordado pelo Estado português com os seus credores estrangeiros, o do financiamento de uma drástica redução da Taxa Social Única (TSU).
A TSU é a parcela das contribuições para a Segurança Social dos trabalhadores que é coberta pela entidade patronal, e que é de 23.5% (contra 11% a cargo dos próprios trabalhadores). A sua redução acarreta uma redução proporcional dos encargos salariais para as empresas, algo equivalente a uma desvalorização da moeda no que toca a esses encargos e que, parece, os economistas consideram ter um efeito muito positivo sobre a economia e a criação de emprego. Falou-se que "redução drástica" seria algo na ordem dos 8%, portanto 1/3 das actuais contribuições patronais, embora provavelmente apenas perto de 5% dos seus encargos gerais com o trabalho.
Ora as receitas anuais da Segurança Social são hoje constituídas por cerca de 7,5 biliões de contribuições dos trabalhadores e 16 biliões de € pelas entidades patronais; a redução das contribuições destas de 23,5% para 15,5% reduziria a receita anual da Segurança Social em 5,4 biliões de € anuais. Mesmo uma redução de metade disso (4%), por estas contas simples reduziria a referida receita em 2,7 biliões, algo consideravelmente mais do que os 1,6 biliões referidos pelo Ministro Santos Silva a este propósito. Admito, porém, não ser especialista em Finanças públicas, e por isso poder ter-me escapado alguma coisa...

O certo é que é gigantesca a diferença entre os 0,37 biliões cobráveis das famílias por um aumento radical do IVA de 6% para 23%, (ou 0,5 biliões, se incluirmos o Estado com congelamento das suas despesas de electricidade), e os 5 biliões necessários para financiar o referido corte de 8% na TSU. Nunca será será possível financiar uma redução universal em 8% da TSU por esta via!

Acontece que esta ideia de financiar uma redução da TSU com impostos sobre a electricidade não nasceu hoje: surgiu num relatório elaborado em 2005 para a União e defendendo a criação de um imposto especial, um excise a que as empresas não escapem - embora a incidir apenas sobre a electricidade de origem "poluente".  E isso leva-nos a prestar atenção às diversas práticas europeias de taxação da electricidade (para além do IVA), chegando assim à conclusão que, se ela é nula como cá em 8 dos Estados membros, atinge na Itália cerca de 5%. A base fiscal para a aplicação de um imposto especial geral sobre a electricidade já existe: o Imposto sobre Produtos Petrolíferos e Energéticos (IPS), que só tem sido aplicado aos produtos petrolíferos.
As questões a colocar, entretanto, são: quanto deveria ser esse imposto e como financiá-lo?

O problema-chave que pode justificar a aplicação do referido imposto especial relaciona-se com a da revisão das tarifas, como o Memorando de Acordo com os nossos credores explicita, e com uma questão mais de fundo que tem sido amplamente discutida por alguns economistas: a da transferência que, sobretudo desde a adesão à moeda única, se tem vindo a fazer em Portugal do investimento, do crédito e dos lucros dos sectores produtivos de bens transaccionáveis (sujeitos à concorrência internacional) para os sectores protegidos da concorrência como o da produção de electricidade. Como se sabe, isto levou a uma trágica redução da capacidade produtiva nacional de bens transaccionáveis.
Neste sentido, a redução da TSU faz sentido não se for aplicada universalmente, beneficiando tanto as empresas produtoras de bens transaccionáveis como mais ainda as que detêm privilégios monopolistas e/ou protegidos pelo Estado, mas sim se for aplicada apenas às primeiras, como bem alertou o ex-presidente da CIP, Eng. Van Zeller. Ou se algum mecanismo fiscal extra fizer esse ajuste, o que será equivalente. Por isso, não terão forçosamente de ser os 5 biliões de € necessários à redução universal da TSU que serão precisos, mas apenas parte dessa quantia - sobretudo a que permita atrair e/ou manter investimento estrangeiro produtivo de bens transaccionáveis, como a Auto-Europa ou mesmo as fábricas de aerogeradores (que só poderão ser competitivos, em exportação, se os custos de produção locais compensarem os custos adicionais de transporte - a VESTAS, por exemplo, e que tem estado a despedir pessoal na Dinamarca e Suécia, considera que os aerogeradores produzidos na China e transportados para a Dinamarca ficam ao mesmo custo que os fabricados nesta, assim como os fabricados em Espanha e transportados para a Suécia). É certo que isto é continuar a velha aposta nos baixos custos salariais como factor competitivo, mas é o que é possível a curto prazo (naturalmente com outras medidas), porque pura e simplesmente não há outro capital acessível que não seja o investimento directo estrangeiro.
Assim, no sector da electricidade importará começar por estancar os investimentos improdutivos, desnecessários e geradores de futuras rendas extravagantes, protegidas da concorrência e que o Governo vigente pretende continuar, tal como defendemos no Manifesto para uma nova política Energética em Portugal.
Mas sendo este um passo essencial, irei agora mais longe do que os meus co-signatários daquele documento e defender que isso não basta; é também preciso rever e reduzir os ganhos extraordinários que estão, neste momento, acantonados na protecção do Estado no sector energético, e transferi-los para a economia de bens transaccionáveis - por exemplo pela redução da TSU nessas actividades, compensando o financiamento da Segurança Social assim perdido com a aplicação do IPS à electricidade, depois de eliminados os referidos ganhos extraordinários.
Bem sei que isto é defendido pelo Partido Comunista. Mas também por "neoliberais" como o economista Vitor Bento, e resume o Acordo assinado com a "troika" nesta matéria!
Também sei que haverá quem se arrepie com a revisão de acordos firmados e defenda que não se deve mexer em tarifas estabelecidas para produtores já autorizados. Mas, a tal argumento contraponho o seguinte:
  1. Também os ordenados dos funcionários públicos e, sobretudo, as reformas dos aposentados, tinham sido contratados com as pessoas e tiveram de ser revistos. Esta mesma razão moral foi invocada, no último "Expresso", para pedir o abandono do TGV por uma pessoa que nada tem de comunista: Manuela Ferreira Leite!
  2. Não se trata de fazer nenhuma confiscação de lucros ou bens legítimos, mas apenas de recuperar para Portugal proveitos extravagantes face às práticas de países líderes na aplicação das energias renováveis e, em alguns casos, ilegitimamente obtidos por lobbies verdadeiramente mafiosos!
  3. Ôs sacrifícios têm de ser repartidos por todos, sem excepção!
Este post já vai longo e, por isso, vou apenas, de momento, mencionar as revisões tarifárias que considero mais que justas e que teriam um impacto muito significativo no custo de produção da energia:
  1. O custo de produção das nossas antigas hidroeléctricas era essencialmente o custo da amortização do respectivo investimento. Findo o longo prazo previsto para essa amortização, o seu custo de produção caiu quase para zero por kWh produzido. Assim, não há justificação para a extensão concedida pelo Estado português à EDP para que continue a explorar essas centrais como se não estivessem amortizadas. É um facto que foi denunciado por Jorge Vasconcelos e que significou a concessão à EDP de centenas de milhões de € de proveitos ilegítimos e à custa dos consumidores. O assunto deve ser revisto de forma séria e independente seguindo as práticas internacionais dos nossos parceiros da União.
  2. As portarias que o actual Governo publicou para remunerar rectroactivamente a EDP e a Tejo Energia pelo seu serviço de disponibilidade orça em mais de 0,5 biliões de €, mas não teve em conta o "favor" que já fora feita ao estender a concessão de exploração das hidroeléctricas. As portarias deverão ser anuladas e a sua justificação recalculada à luz do ponto anterior.
  3. Uma primeira avaliação destes ganhos adicionais aponta para um sobre-lucro anual de 0,3 biliões de €, um extra da mesma ordem da que a EDP vem apresentando por comparação com congéneres estrangeiras. O valor deve ser verificado e a ERSE deve corrigi-lo, cumprindo o papel para que foi criada: a defesa dos consumidores e do superior interesse de Portugal.
  4. Finalmente, as tarifas que remuneram as instalações eólicas existentes deverão ser calculadas rectroactivamente e corrigidas no remanescente futuro, à luz das práticas alemãs, neste domínio exemplares, e tendo ainda em conta 3 factos: a) que o factor eólico de utilização médio alemão é de 0,19 enquanto o nosso é de 0,25; b) que o custo de instalação do MW eólico em Portugal é 90% do alemão; c) que em boa parte dos investimentos nacionais nas eólicas houve comparticipação a fundo perdido de "ajudas" europeias, até 40% do investimento total em alguns casos. Nas contas que apresentei há quase um ano, estimei em 0,2 biliões de € os sobre-lucros obtidos pelas "anomalias" do tarifário nacional, mas penso que aquele valor, que necessitaria de uma afinação com dados rigorosos sobre o diferencial nas taxas de juro dos financiamentos das eólicas em Portugal e na Alemanha antes da crise, peca por defeito.
Penso que as correcções tarifárias indicadas permitiriam poupar ao país pelo menos 0,5 biliões de € - a mesma ordem de grandeza que o extraordinário aumento do IVA de 6% para 23% na electricidade poderia gerar. Para que este valor pudesse ser transferido pelo Estado para a Segurança Social de modo a financiar a redução da TSU, teria de corresponder a um IPS, um excise, de 8% ou 9% em média, a redução aproximada do custo da electricidade que proporcionaria a revisão tarifária que indiquei.
Claro que essa transferência de rendimentos por via fiscal poderia também ser reforçada com o IVA de 23%, similar também ao italiano, com o que se chegaria a 1 bilião de € de receita fiscal, divididos a meias entre consumidores e "subsídio-dependentes"...
Mas 0,5 biliões de € já permitiriam financiar a referida redução em 8% da TSU a 10% da massa salarial, quiçá a mais concentrada em sectores produtores de bens transaccionáveis.
Como a ENERCON de Viana do Castelo...

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